Páginas ao vento

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Convicções!




Emil Cioran já dizia: A convicção mata o homem.
Pois é a partir delas que acabamos por gerar a invisibilidade do outro. Uma pessoa cerrada em suas convicções não possui ouvidos, nem olhos, apenas a boca e suas palavras duras. Como os dogmas das religiões com seus deuses únicos. Por convicção se fez as guerras santas, de ambos os lados. Se fez também as guerras modernas, transmitidas pela TV e celulares. Creio que a convicção está amparada na crença de uma verdade única, utilizada para domínio e poder sobre os outros, mas posso mudar de opinião.
O homem é plástico e moldável. Hoje, não creio mais em muitas coisas em que acreditava na juventude, mudamos com a experiência e melhoramos com isso. Convicção é como fé cega, sem o conhecimento nos leva ao fanatismo.
Não podemos negar a experiência vivida por outros, devemos ouvir e argumentar, sair da possibilidade de uma feira de cumes que torna toda crítica um fato pessoal.
Fora com a convicção, bem vinda a interlocução!

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Tempo Livre S/A

Na falta do que fazer:
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Criaturas e Criadores



Tenho acompanhado as informações na imprensa sobre as agressões de adolescentes paulistanos e também o que ocorre, de outras maneiras, no interior do estado. Procurarei montar um mapa dessas condições que, ao que me parece, se produzem a partir de relações familiares e administrativas da educação.
Procurando entendê-las, recuo um pouco na arqueologia dessas relações, ou seja, no relacionamento dos avós com os pais dos agressores. Creio que estes avós seriam mais conservadores, como meus avós o foram com meus pais e estes com seus filhos: meus irmãos e eu.
Venho de uma família do interior de São Paulo, porém não menos tradicional e que se “tornou” paulistana ao optar por fixar residência na capital. Meu pai foi criado em sobrado numa vila da alameda Lorena e posteriormente na, antigamente chique, Haddock Lobo com Fernando de Albuquerque. Eram burgueses dos anos 50 e 60 e assim foi a tentativa de transmitirem estes valores à prole.
Não funcionou, apesar de, em casa, chamarmos pai e mãe de senhor e senhora.
A escolha dos grupos de convivência por afinidade, comum na formação da identidade dos jovens, acabou por nos livrar do que mais tarde entenderíamos como sendo um ranço conservador e direitista na formalização da educação quanto na visão política do entorno.
Fomos criados com muito “pulso” (como diz em entrevista à Folha, um dos pais dos agressores, como sendo o que faltou e que reproduzo, ipsis litteris com grifo no que considero enfraquecimento da relação formadora de caráter: “Meu filho e os dos outros também saíram UM POUCO do controle. Faltou pulso.”)
Tendemos a amenizar os atos de quem amamos, muito embora, de minha parte, tenho sido, por vezes, cruel na análise da importância do papel que meu pai ocupou na passagem de valores que teimei por negar em minha vida. Homofobia, direitos humanos, preconceito contra negros e pobres, contra as drogas, mas não contra o álcool e, enfim, pouco respeito ao diferente que nos cerca, foram muito comuns em meu círculo familiar.
Conforme citado em entrevista colocada aqui no blog mês passado, meus valores foram construídos sobrepondo-se a esses valores que me acompanharam, e a meus irmãos, na infância e adolescência.
Colocar o filho como vítima, que está sendo “massacrado” e como “um homenzarrão que vive chorando pelos cantos”, não justifica a escolha pelas companhias e as posteriores ações de grupo, mesmo que o sujeito fique à margem das agressões, este não se opôs, ou sequer tentou intervir contra o que poderia considerar “errado”. O fato de conhecer os “rapazes” nas baladas, vem confirmar o pertencimento ao grupo por afinidades. Que afinidades são estas? As de comportamento de afirmação de gênero, em sua maioria.
Talvez tenha faltado pulso também junto aos pais dos meninos em suas formações. Talvez tenha faltado pulso também no relacionamento entre administradores das escolas e seus alunos. Não o pulso da repressão, mas o da correta orientação em relação à diversidade e do respeito ao outro e às instituições.
A aventura de roubar num supermercado pode nos mostrar como entendemos as pequenas infrações que podem gerar as grandes infrações. Nos anos 90, meu filho, então com 12 anos, participou com um grupo de uma farra dentro do Carrefour, quando um dos garotos “pegou” um yogurte e saiu sem pagar: roubo. Foram pegos pelo segurança na saída. Meu filho chegou em casa tenso e na conversa veio a nos falar do ocorrido (alegando que não participara diretamente no roubo, mas que “apenas” estava junto com a turma). No dia seguinte o levamos ao supermercado e conversamos com o inspetor de segurança que ralhou com ele e conosco. Ao final nos disse: “em 10 anos de trabalho e de muitos acontecimentos como este, é a primeira vez que pais voltam com os filhos para esclarecimento, vocês estão de parabéns!”
Não, não é um elogio, mas a constatação de como os pais não valorizam as ações dos filhos fora de casa, de como estas ações são menosprezadas enquanto valores formadores do caráter dos mesmos.
Em Araçatuba, interior de SP, um grupo de meninas e meninos de uma escola pública assediou, aterrorizando, uma garota negra da sala de aula. Durante 3 meses ela pagou para não ser agredida, gastou cerca de 800 reais, roubando da mãe o dinheiro durante esse tempo. Nesta semana, a mãe, angustiada com o sofrimento solitário da filha conseguiu que esta falasse o que ocorria. Juntou os bilhetes ameaçadores e foi na escola tirar satisfação. Para a reportagem do SBT Brasil, o diretor da escola não encarou a câmera, andando de um lado para o outro, aturdido (como nossos homens públicos), negou que soubesse do caso e mandou que os jornalistas procurassem o MEC através do 0800. Qual o resultado dessa formação de quadrilha, preconceito e extorsão? Uma breve e discreta advertência verbal: abismo!
De onde vêm as ideias dos “facilitadores” da vida? Vêm também da indústria cultural, do apelo do consumo. Jovem militar do GATE paulistano sequestra e mata jornalista, porquê? Para ter mais dinheiro para consumir Tvs de Led, carros importados e baladas bem regadas.
Pode parecer discrepante a associação destes fatos, mas não é. É uma questão de mentalidades. Estamos sendo co-autores das mentalidades dominantes na sociedade que valorizam o ter em detrimento do ser.
Há um esgarçamento das relações de direito que moldam as atitudes do homem na comunidade. E a responsabilidade sobre isso, volto aqui a afirmar, recai sobre a transformação (para pior) do sistema educacional que se diz melhor por ser numérico (grandes quantidades), em detrimento da qualidade (de aprofundamento). Uma boa educação se reproduzirá em melhor discernimento sobre o convívio em sociedade. Mas temos algumas gerações perdidas na interpretação desse conceito, pois filhos e pais são frutos destas modificações no sistema, que resulta no que temos visto cotidianamente e que podemos chamar de um grande “mal estar na civilização”, devido, justamente, à questão do espetáculo, da cena e do drama.
Posso dizer que é uma péssima peça, gostaria de me levantar da poltrona e sair no meio!

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Detalhes!

Schopenhauer em sua construção do mundo como representação coloca o Pralaya budista (o descanso do criador) como não ser. Mas, como não existe o tempo, que é percepção fenomênica do humano material, não existe não ser e, muito menos, ser: apenas um eterno vir a ser, pois que a percepção de ser se torna memória e, portanto, para nós, passado, como tudo o que nos rodeia a partir das referências materiais. Basta que olhemos para as estrelas! Entretanto nos Upanichades lemos “[...] Sou todas estas criaturas em conjunto, e fora de mim não há nenhum outro ser [...]”, pois que não há fora no sentido de exterioridade, estamos imersos na manifestação (o Deus das religiões).
O filósofo está se referindo à vontade objetiva na percepção do mundo e aplica o conceito de Maya (ilusão) sobre tudo o que é perecível. Como o mundo em que vivemos é o da experiência, este é transitório e portanto, apesar de real para nós que vivemos neste plano, passageiro, porém, jamais uma ilusão no sentido de delírio fora de uma realidade.
Os Upanichades afirmam a realidade deste plano material como sendo a sombra da verdadeira manifestação (que se dá no invisível – plano da vida com outra frequência vibratória e que nós, comuns mortais não o percebemos e assim, o chamamos de invisível). É de onde Platão retirou a ideia da caverna. Só que no texto sânscrito, menciona-se “tela branca” onde é possível ver as projeções das manifestações, que para os espíritas seria a verdadeira vida, no astral. A afirmação bíblica “ assim como é encima, é embaixo” (assim no céu como na terra), tenta nos passar essa ideia, apesar de forma muito velada. A noção de que formamos representações sobre todas as coisas a partir do conhecimento de si mesmo, tenta mostrar como generalizamos ideias conceituais na tentativa de classificar o entendimento do mundo de maneira organizada, o que nos limita a compreensão de coisas que não se manifestam aos nossos olhos. A racionalização nos impede de sentir o mundo. A intuição seria a única possibilidade de compreender que não somos separados da natureza (mundo, ou universo). Isto é budismo, que é verdadeiramente holista, como o RigVeda, além de ser poesia. Cito novamente o filme “Contato” (com a Jodie Foster da década de '90). “_Vocês deveriam ter mandado um poeta” ela fala ao tentar descrever sua experiência através das galaxias. A razão restringe demais o que se vê e o que se sente, pois conceitua a partir de nossa experiência fenomênica fazendo descrer as experiências interiores. Poderíamos dizer: assim como é dentro é fora, e, assim, o universo se abriria para nossa compreensão, a própria noção de eternidade (o agoramente dos gregos) e uma verdadeira experiência numismática se nos revelaria.
Como colocar estas experiências “interiores” em palavras que, para que tenham sentido, necessitam de um aparato simbólico que as organize sensitivamente? Por isso a arte se faz necessária juntar à ciência para que expandíssemos nossas noções limitadas por educação condicionada à época. Ou como diz Lévi-Strauss, acrescentar mais pensamento metafórico ao metonímico. Temos tecnologia de última geração e mentalidade de penúltima (geração). A poesia pode nos libertar dos dogmas massificadores e enclausuradores que nos impedem de avançar na construção intuitiva de nossas representações sobre a vida, e de olharmos o outro, como a nós mesmos.
                                                 Claude Lévi-Strauss em sua biblioteca

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Mentiras Deslavadas

Realmente é o fim da goiabada!
Tenho visto os jornais diariamente e encontrei algumas notícias que demonstram a acomodação de nosso caráter em uma nova cultura, a meu ver, totalmente esgarçada. Vamos lá!
1- A empresa do marido da moça (Foster) da petrobrás, antes da posse dela na diretoria, teve apenas uma prestação de serviço; após a posse da moça, teve perto de 45 prestações de serviço. A empresa (petrobras) e os advogados do marido NEGAM que haja irregularidades, ou influência de poder!
2- Após passeata gay no Rio, militares surram e tentam matar a tiro um participante. Dizem pro rapaz que se pudessem matavam-no com as próprias mãos. Os militares NEGAM que tenha havido disparo de arma de fogo!
3- Em SP, um grupo de jovens caminha pela paulista surrando 4 pessoas em locais diferentes. À polícia, NEGAM; o advogado dos rapazes também NEGA o ocorrido, dizendo que houve apenas confusão e a mãe de um deles diz que são apenas crianças!!! Mas eles têm entre 16 e 19 anos!!!
Me lembra dos “meninos” que em Brasília mataram um índio na rua e disseram a polícia que “achavam” que era um mendigo!
4- Um tempo atrás, garotos agrediram um jovem que saia de uma casa noturna e após o derrubarem no chão, pulavam com os pés sobre sua cabeça no intuito de estourarem o crânio. À polícia, os advogados de defesa NEGARAM que estavam tentando matá-lo!
5- Na Unesp, "crianças" se divertiam à custa de pessoas que, de alguma maneira, eram diferentes deles, montando nas costas das pessoas (mulheres) gordas, gritando e agitando as mãos como se fosse um rodeio. Á justiça, NEGARAM, que estavam praticando qualquer tipo de violência. Disseram que estavam apenas se divertindo!
É isso aí, negar, negar e negar os fatos pra poder transformá-los em desdita realidade. Um costume que se tornou geral. Ninguém assume responsabilidades sobre nada.
É o fracasso social, resultado do “novo” cuidado na educação dos filhos a partir da incorporação dos valores dos adultos públicos. Lembra uma declaração do Cristovão Buarque na câmara dos deputados em Brasília sobre a mentira que se torna cotidiano e que influencia a juventude num costume nocivo. Parece que ele estava certo.

Criminalizar a Homofobia, o Preconceito e a Violência responsabilizando o Estado e a Família.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

HommoDemens

                                                  Deus, do ponto de vista de MichelAngelo

Começo reescrevendo um diálogo que consta no filme “Contato”, da década de 90, com Jodie Foster:

“_ Você acredita em Deus?
 _ Não acredito em algo que não se possa provar!
 _ Você amava seu pai?
 _ Nossa … e como!
 _ Então prove.”

Bem, é um diálogo entre um filósofo e uma cientista, mas vou estendê-lo para nosso cotidiano.
Não conseguimos provar se amamos alguém, ou o quanto amamos, nem mesmo como amamos.
Tomamos consciência do amor de outros sobre nós, como por exemplo, o amor de nossos pais, somente quando temos nossos filhos. Aí entendemos o quanto fomos amados e o que significa o que chamamos de sentimento do amor, que é o amor em si.
Para provarmos que amamos nossos filhos, acabamos por tentar provar este amor através da materialização em objetos de consumo, ou pela permissividade exagerada. Tentamos provar o amor materializando-o em objetos ridículos, do ponto de vista filosófico. Mas, estamos apenas agindo como cientistas da vida.
Já sobre a existência de Deus, muitos, mas muitos mesmo, de nós, acabamos por confessar que acreditamos Nele. Porém, ao nos perguntar, quem ou o que é Ele, tornamos Sua representação material, através de uma aproximação, em persona, que caiba em nosso ralo imaginário e que não passa de fantasia, ou de uma simples representação. Deus é improvável! Assim como o amor. Mas que existe, existe, pois a um deles ao menos somos capazes de confirmar experiência prática. Principalmente nós que temos filhos.
Já quando, na rua, o semáforo fecha no vermelho, também fechamos as janelas do automóvel para evitar o assalto, ou a violência.
Não nos atemos ante a possibilidade de que, a pessoa que está do lado de fora, teve, no mínimo, uma grande ausência em sua formação. A ausência do pai, ou da mãe, ou da avó e de seus amores. Uma ausência que tem por fundamento a plasticização do ser e sua formação social. Ausências que desconectam os sentidos que nos inserem, que nos dão lugares no mundo. Mas, eu também fecho o vidro do carro!
Porém estou tentando pensar sobre questões básicas que ajudam na formação de um ser humano pleno. Além do núcleo familiar e de suas histórias, que nos vão dar apoio para que possamos lidar com frustrações e dificuldades, a escola é o ambiente do confronto com o diferente e das possibilidades de superação e de entendimento de relações, representações e disciplinas que nos tornarão HommoSapiens.
Tenho que parafrasear Morin ao descrever HommoSapiens como aquele ser dotado de razão e sabedoria, mas que traz em si afetividade extrema, convulsiva, com paixões, crueldades, cóleras, ciúmes, inveja, arrogância, gritos, mudanças radicais de humor, que carregam consigo uma fonte permanente de delírios em sacrifícios sanguinolentos pelo poder. Um ser humano que é insuficientemente dotado de razão, e que, quando sua plástica social falha é dotado da desrazão, que o domina.
Vivemos num mundo de aparências, essa é a verdade. Apenas a espuma das realidades toca em nossos cotidianos, para nos dar sentido. Se nos sentimos rodeados por HommoDemens, temos que nos perguntar porque continuamos a exercer a falha que os formam. Pelé em seu milésimo gol, ofereceu-o às crianças destituídas de esperança. De lá pra cá nada mudou, pois continuamos a fechar as janelas de nossos automóveis, embora professemos acreditar em Deus e no exercício restrito do amor, desde que não nos contradigam.
Fiquei muito decepcionado com o fato de a nova presidente declarar que a questão da educação no Brasil estava boa e resolvida. Tenho visto em aulas ministradas em faculdades privadas, uma GRANDE deficiência no entendimento de textos, no respeito à hierarquia e na proposição de valores. Cito um “causo” ocorrido em faculdade de Londrina/PR: um grupo de alunos (cerca de 30) se aglomeram na coordenação de curso para pedir o afastamento definitivo do professor de sociologia. O motivo: o professor pediu a leitura de um livro; de todo o livro; completo; do começo, meio e fim, para o bimestre. O professor foi chamado à coordenação e ouviu o seguinte: “... mas professor, o senhor deu um livro inteiro pros alunos lerem?”
Pois é, já formamos a intelligentsia do país que vai comandar o mercado e permaneceremos no erro, não por falta de amor, mas por excesso de provas.

    
  Deus, do ponto de vista Teosófico.


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Novíssima Consciência

Estava folheando um livro que trago comigo desde 1973: Nova Consciência, jornalismo contracultural – 1970/1972. Seu autor é Luis Carlos Maciel, o qual já foi citado aí embaixo num texto meu. “A morte do liberal”; “As novas tribos”; “A nova família”; “Fascismo no Underground”; “Coisas boas”; “A cultura da bomba”; “O poder em jogo”, são os títulos dos capítulos do livro, terminando com “O fracasso da contracultura”. Como passei minha adolescência numa cidade do interior paulista, o livro supria o anseio por novidades e mudanças que não encontrava no caminho da escola, ou do clube e, mesmo, entre os amigos. A revista “Geração Pop” surgiu na trilha poeirenta dessa senda com grandes apelos comerciais, transformando o que era especial em nossas mentes, numa produção industrial espraiada.
Esses títulos ainda são atuais. Mas, quem são os sobreviventes do underground entre nós? Quem são os outsiders de nossa sociedade? Muito ao contrário do que ocorria naqueles anos, nossa juventude, ou ao menos parte dela, não procura se espelhar nesse segmento, porque sua existência é extremamente marginal aos apelos que nos chegam pelas diversas mídias.
Certo dia deste ano, caminhava em direção à praça, no quarteirão ao lado de casa, quando presenciei a seguinte cena: um mendigo quase se arrastava com seus sapatos grossos, inchados e desfeitos, a pele suja e marrom, cabelos desgrenhados com um saquinho de supermercado onde deveriam estar seus bens. Em frente de seu caminho, numa casa amarelinha, um rapaz ensaboava sua perua Pálio Weekend de cor negra, brilhante, cheia das coisas, ao som de um potente sertanejo universitário. O mendigo parou e deve ter pedido alguma coisa, não cheguei a ouvi-lo, mas ouvi a resposta raivosamente gritada: “_ NÃO, NÃO TENHO NADA PRA DAR!”
Assim, o farrapo humano seguiu seu caminho, arrastando os pés e olhando para o chão.
Fiquei pensando para além do automóvel do rapaz, em sua geladeira cheia de coisas paradas, à espera de alguém utilizá-las, na TV Combo da Net, no DVD, nas caixas de som ao lado do sofá de courino, na cama arrumada com lençóis limpos e travesseiros, no banheiro com sabonete Phebo e toalhas macias, nos quadros de paisagens nas paredes, na despensa cheia de produtos do supermercado, na ração do cachorro, no telefone celular de modelo atualizado, no computador com internet, no guarda-roupas lotado, com roupas que não viam o sol há pelo menos 2 anos, sem falar nos sapatos de bico fino, nos pares de tênis e meias brancas; no assoalho brilhante, no curso da faculdade privada e nas conversas nos bares a noite, regadas a cerveja e petiscos, na companhia de garotas sertanejas universitárias. “_ NÃO, NÃO TENHO NADA PRA DAR!”
Neste segundo turno, confesso, votei em branco. Não engulo o fisiologismo, o nepotismo e o simonismo que foi revelado numa administração petista. Mas, torço para que o governo dê certo. Para que a promessa feita de acabar com a miséria nesse país seja cumprida. Colaborarei como for possível para que isso aconteça. Gostaria que a oposição não fosse uma oposição idiota, que luta pelo fracasso, mas que se oponha às falcatruas que possivelmente venham a ocorrer, porque gente de todo tipo está envolvida nesse mister, de ambos os lados. Gostaria de ver uma manchete nos jornais do futuro: “O sucesso de nossa cultura”, mas não aquela cultura divulgada como típica de nossa gente, exemplo ralo de brasilidade, mas uma nova cultura, arraigada em nossa alma, de respeito e disponibilidade aos diferentes: uma homenagem a la Darcy Ribeiro, de um tropicalismo humanista moreno e amoroso que nos completará a dignidade.